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"Nosso Grupo de Genealogia da Familia Freire será tão forte quanto seus membros o façam"

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 O que querem os dicionários?
(Introdução a Ensaístas brasileiras)
 

 

 

O registro biobliográfico que apresentamos neste Ensaistas brasileiras não é uma novidade na prática literária feminina. Um rápido exame da historiografia da literatura comprova como as mulheres, desde muito cedo, sentiram como necessária e urgente a tarefa de dicionarizar, antologizar, produzir coletâneas de literatura e ensaismo femininos.

Já em 1899, durante o rush republicano de construção de uma História do Brasil, época na qual proliferam as coletâneas de biografias exemplares e os perfis de vultos notáveis, Inês Sabino Maia publica Mulheres ilustres do Brasil. Esta publicação revela um primeiro esforço, como afirma a autora, para tirar as mulheres da "barbárie do esquecimento", projeto que será recorrente e mesmo sintomático da historiografia e da crítica literária femininas em geral. O trabalho de Inês Sabino, comprova como bem cedo as autoras mulheres perceberam na legitimidade deste gênero para-pedagógico de historiografia um terreno promissor para a escrita de suas histórias e experiências particulares. Em certos casos, esta prática foi ainda sentida como um campo possível para a articulação de um discurso, muitas vezes radical, sobre a mulher, no momento em que eram debatidas questões altamente controvertidas como o destino da educação feminina, os novos papéis da mulher na sociedade e a possibilidade efetiva de sua entrada na vida pública.

É interessante a forma como Sabino define seu Mulheres ilustres apresentando-o como uma obra que pretende, através da criação de um "código de simpatia" (sic), fazer justiça ao trabalho das mulheres, registrá-lo e criar uma articulação entre as produtoras, bandeiras que desafiam a atitude pedagógica condescendente que orienta a maior parte dos volumes biobibliográficos relativos a personagens femininas da época.

Outra forma bastante específica que marca a intervenção feminina na área da literatura é a organização de dicionários biobliográficos e de antologias da produção feminina.

Quase todos os dicionários e antologias feitos por mulheres, que constituem uma significativa fração da produção crítica e historiográfica femininas, evidenciam em seus prefácios um claro projeto político de sobrevivência e uma lógica de apoio e estratégia de mercado.

Na década de 20, uma tese, intitulada A mulher na literatura, talvez a primeira sobre o assunto, escrita por Maria Rita Soares de Andrade, concorre à livre docência da cadeira de Literatura do Ateneu Pedro II de Aracaju. Em sua introdução, a insistência nos percalços da historiografia oficial:
 
 

"Difícil é, entretanto, recolher toda a obra feminina, os nomes de suas autoras que, sempre, principalmente na sociedade que nos antecedeu, ficavam incógnitas, como incógnitas ficaram muitas produções valiosas de cérebros femininos(1)"

Um aspecto que merece atenção neste impulso feminino recorrente de organização do trabalho e da prática das mulheres, é, sem dúvida, a reivindicação, para si, do "direito de classificar", ou seja, de intervir na própria lógica estrutural da constituição do cânone literário, cujos critérios de exclusão e inclusão, de valor e legitimidade, são dados tidos como "naturais" e determinados por uma tradição histórica milenar e inquestionável.

São neste sentido as publicações Galeria ilustre (Mulheres célebres), de Josefina Álvares de Azevedo (1897), A mulher rio-grandense e escritoras mortas de Andradina de Oliveira (1907),e os mais recentes Perfis de musas, poetas e prosadores brasileiros, de Alzira Freitas Tacques (1956-1958), em cinco volumes, sendo o primeiro dedicado às escritoras mortas e desaparecidas, Mulheres célebres de Rute Guimarães (1963) e Mulheres admiráveis, obra póstuma de Henriqueta Galeno (1965).

Aguarda-se para breve o Dicionário de escritoras brasileiras, em elaboração desde 1989, por Nelly Novaes Coelho. Trata-se da relação das mulheres poetas, ficcionistas e autoras de teatro, do século XIX até a atualidade.

Quanto às inúmeras antologias produzidas nestes últimos anos, destacam-se as de contos organizadas por Edla Van Steen e Rachel Jardim, intituladas, respectivamente, O conto da mulher brasileira e Mulher, mulheres, ambas de 1978; O livro da Ajebiana, textos de escritoras, compiladas por Cândida Galeno (1979) e Palavra de mulher; poesia feminina brasileira contemporânea reunida por Maria de Lourdes Hortas (1979).

Entre os dicionários, coletâneas biográficas, antologias e as demais formas de classificação e registro nas quais as mulheres vem se empenhando, gostaria de chamar atenção, ainda, para os trabalhos de Adalzira Bittencourt. Além do conhecido Mulheres e livros, de 1948, catálogo que concentrou a maior parte da produção literária feminina conhecida até aquela data, publicou o Dicionário bio-bibliográfico de mulheres ilustres, notáveis e intelectuais do Brasil, em 1969. Infelizmente, só conseguiu completar os três primeiros volumes, referentes às letras A e B. Ainda que insistindo no projeto de ser "apenas um lembrete" para a história literária, esse trabalho, de estrutura e estilo absolutamente livres em relação às normas e ao rigor esperado de um "dicionário", revela, através de uma lógica classificatória particularíssima, um procedimento recorrente da prática feminina de "ocupação" das formas e gêneros legitimados pela literatura institucional. Uma observação: entre verbetes opinativos e considerações sobre a literatura, Adalzira, a quem, por sua obstinação e atrevimento, este trabalho é dedicado, "bloqueia" mais de quinze páginas de seu dicionário para o relato da própria biografia.

Pode-se perceber, nestas obras pioneiras da prática da crítica feminina, o eixo central da preocupação com a lógica do "silenciamento" na construção da série literária, marcando uma tendência, de claro acento político, em denunciar e tentar romper com a estigmatização da presença feminina na literatura. A idéia de "recuperar uma presença" pode ser observada nas introduções destes trabalhos, pela insistência na procura de fotografias, desenhos ou ilustrações, marcas sempre desejadas e raramente reconstruídas. Hoje, a "tendência arqueológica", uma das linhas de força da crítica literária feminista contemporânea, formaliza esta preocupação e lhe dá estatuto científico.

Ensaistas Brasileiras é portanto não apenas um convite à investigação da trajetória do pensamento critico feminino mas também a continuidade de um trabalho que vem sendo desenvolvido com persistência por mulheres brasileiras há mais de um século.
 

Antecedentes, precursoras, ensaístas & suas estratégias
 
 
 

Muito se tem discutido sobre o valor e o alcance da critica, sobre a sua função junto à arte. Há quem a considere mera parasita, há quem lhe exagere a importância...Na verdade, é um gênero literário que, por necessitar de um ponto de apoio na obra alheia, não deixa de possuir personalidade própria - e independente - de constituir uma forma interessantíssima de literatura.
Lucia Miguel Pereira(2) 

 

As noções de ensaísmo e de crítica literária, como dos demais gêneros tradicionais, têm se revelado altamente problemática a partir dos questionamentos feministas mais recentes. Estes estudos vêm demonstrando que, ao lado das formas "legítimas" que a historiografia sancionou e elegeu como compatíveis com o cânone clássico da literatura, havia uma "economia literária informal", cuja produção era de um interesse surpreendente. O vigor quantitativo e qualitativo destas formas "excluídas" mostram o caráter de absoluta relatividade das noções institucionais referentes à categorização dos gêneros literários. Um dos efeitos mais decisivos do questionamento do cânone literário foi o resgate dos "gêneros menores" e das formas e redes de associação intelectual entre as mulheres, que sintomaticamente abrigaram a maior parte da escrita e da reflexão femininas.

Por este motivo, ao se identificar os antecedentes do ensaísmo realizado por mulheres, talvez mais significativo do que o levantamento das possíveis figuras fundadoras, seja o mapeamento do conjunto de práticas críticas no qual as mulheres se envolveram desde o século XIX até a primeira metade do XX, quando a pesquisa acadêmica começa a profissionalizar-se no pais.

Seriam, numa primeira avaliação, as atividades de leitora, (presença fundamental dos saraus literários), de produtora, de escritora e de consumidora da imprensa feminina, que circulou de forma surpreendente na segunda metade do século XIX, bem como de organizadoras de salões literários e academias femininas de letras. Estas práticas parecem particularmente importantes, na medida em que se desenvolvem de forma híbrida, combinando a reflexão sobre as artes e a literatura com o claro projeto de articulação de redes cujas funções e sentidos são extremamente diversificados, indo da tentativa de realizar uma historiografia própria, de promover uma experimentação dos limites e formas literárias até a de organizar circuitos de divulgação de trabalhos, de solidariedade ou de discussão e protesto sobre a condição feminina. Muitas vezes é interessante notar o uso da associação e da reflexão em torno da literatura como campo permitido de ensaio e passagem para a atuação mais efetiva na vida pública. O traçado das genealogias sutis das relações entre as mulheres e a escrita, levando em consideração não só aquelas que escreveram, mas também aquelas que leram e que fizeram ler, pode ser apontado como uma das tarefas mais importantes da crítica feminista. Observa Mary Pratt e Marta Morello no texto de apresentação do número 4 da revista Nuevo Texto Crítico (1989),
 
 

Apesar dos esforços para "domesticar" a mulher privilegiada durante o século XIX, e de negar-lhes os direitos políticos e profissionais que elas esperavam do republicanismo, nunca lhes foi negado o acesso a alfabetização e uma participação, ainda que subalterna, na cultura letrada. Ao contrário, nas Américas, e esta é a contradição mais significativa, a sociedade burguesa terminou por definir a própria alfabetização como uma tarefa essencialmente feminina.

 

Sobre a leitora gostaria de mencionar os estudos seminais de Marlyse Meyer(3)
que discute o papel definitivo da mulher na formação do romance brasileiro enquanto leitora de folhetins, adaptando o gosto do mercado às condições e à moral brasileiras. Segundo Marlyse, as mulheres não só conformaram o novo gênero nos saraus domésticos mas também o divulgaram através do exercício de sua tradicional função de contadoras de histórias. Valiosas também no sentido de interpretar o fenômeno da leitura feminina e a força de sua influência na obra dos escritores do século XIX, são as pesquisas de Elza Miné e Maria Helena Werneck(4).
 
 

A imprensa

Um espaço decisivo para o desenvolvimento da expressão feminina foi a imprensa dirigida e editada por mulheres, que prolifera dos meados do século XIX ao primeiro decênio do século XX, no rastro dos movimentos feministas e das campanhas republicanas de "educação" da mulher para a promoção de uma nova "nação brasileira educada, saudável, branca e moderna".

A primeira dessas publicações foi o Jornal das Senhoras, criado em 1852, que,ao lado das seções de moda e "mundanidades", investia no campo da literatura,da política e das artes. Fundado pela jornalista Joana Paula Manso de Noronha, de inflexão claramente feminista, o Jornal das Senhoras, em seus quatro anos de existência, abre um espaço importante de divulgação e discussão para as mulheres artistas, escritoras ou políticas.
 
 

Eis-nos, pois, em campanha; o estandarte da ilustração ondula gracioso a brisa perfumada dos trópicos: acolhei- vos ele, todas as que possui uma faísca de inteligência, vinde!

Confidente, discreto das nossas produções literárias;elas são publicadas debaixo do anônimo:porem não temais confiarmo-las, nem temais dar expansão ao vosso pensamento; se o possuis é porque é dom da Divindade e aquilo que Deus dá, os homens não podem roubar. (Editorial do primeiro número em 1/1/1852)


 

O jornal, em formato tablóide, mantinha seções fixas como a "Crônica dos Teatros",uma espécie de crônica social, "Poesias",e o "Correio dos Salões", com a discussão dos assuntos em pauta nos salões literários, abrigando a publicação de cartas, contos e crônicas das leitoras. Nestas seções, publicadas, com freqüência, "debaixo do anônimo", começa a se configurar uma critica literária incipiente e "amadora", muitas vezes aparentemente ingênua mas que, indiretamente, sintonizava-se com o contexto das lutas das mulheres registradas pelos editoriais.

Na esteira do Jornal das Senhoras, uma dezena de outras publicações dentro do mesmo espírito marca a virada do século XIX para o XX: O Belo Sexo, de 1862; Jornal das Famílias,de 1863; O Domingo de 1873; Eco das Damas, de 1879; A Mãe de Família,de 1879; A Mulher, de 1881; O Quinze de Novembro Feminino, de 1889; A Violeta, de 1900; O Nosso Jornal, de 1919; a Revista Feminina, 1914, são alguns dos títulos que surgem neste período. Não foram poucas as mulheres que publicaram ensaios literários nos jornais femininos. Em 1889, a escritora Josefina Alvarez de Azevedo cria no jornal A Família, do qual foi fundadora, uma "Seção Literária".
 
 

A Família terá sua seção literária na qual sairão a lume todas as novidades que nas letras forem aparecendo. Além disso, possuirá numerosa redação literária, composta de mulheres de letras de todo o modo habilitadas, que fornecerão às páginas do nosso periódico os frutos de seus trabalhos com os quais brindaremos os nossos leitores(5). 

 

Diversas escritoras participaram ativamente na imprensa feminina. A poeta Narcisa Amália, por exemplo, publica nesta época regularmente artigos em jornais do Rio e São Paulo e edita, em Resende, interior do Estado do Rio, um periódico literário exclusivamente feminino.

O número de mulheres que colaboraram com crítica e ensaios em jornais femininos, do final do século XIX até a década de 30, não pode ser considerado desprezível. Entre as principais, poderíamos citar, a partir de um primeiro levantamento superficial, os nomes de Heloisa Lentz de Almeida (Vida Literária e A Noite Ilustrada), Marieta Alves (jornais da Bahia), Ana Autran (com a publicação específica do artigo "A Mulher e a Literatura" no Diario da Bahia, 1817), Albertina Berta (O Jornal do Commercio e O Jornal entre as décadas de 20 e 30), Amélia Bevilaqua (editora, no Recife,do jornal O Lirio 1902 - 1904), Carmem Dolores - pseudônimo de Emilia Moncorvo Bandeira de Melo - (Correio da Manhã e O Pais, onde manteve a coluna "Semana"); Alba Canizares Nascimento (Jornal do Brasil e Jornal do Commercio) sem falar na grande produção anônima que esta imprensa abrigou.

A importância da imprensa feminina do século XIX na formação de uma literatura e de um ensaísmo femininos vem sendo reconhecida pelos estudos da área e constitui forte tendência da pesquisa sobre a mulher na literatura. Atualmente, existe uma série de trabalhos e pesquisas nesta direção, entre os quais citaria, "Um século de imprensa feminina em Pernambuco: 1830-1930" de Luzilá Gonçalves Ferreira, Maria Nilda Pessoa e Marluce Dantas, "A imagem da leitora no periódico O Novo Mundo" de Elza Miné, "O Belo Sexo: imprensa e identidade feminina no início do século XX" de Fernanda Bicalho , "A Fala-a-menos: poesia e imprensa feminina na Primeira República" de Sylvia Paixão.
 

Salões, saraus & academias

Outro circuito importante é o que diz respeito aos salões literários, que se multiplicaram desde o Segundo Reinado até a década de trinta do século XX. Na Europa, os salões, considerados por Montesquieu como "um tipo de república...um novo estado dentro do estado", foi uma criação das mulheres da aristocracia. Espaço semi-público, situado entre a casa e a rua, o salão literário foi um dos poucos territórios onde as mulheres tinham um lugar reconhecido, e onde efetivamente desenvolveram formas originais de sociabilidade em torno do exercício e do debate literário.

No Rio de Janeiro, Laurinda Santos Lobo foi a principal salonniere. Em sua casa de Santa Teresa, reuniam-se semanalmente escritores, artistas e celebridades estrangeiras de passagem pelo Rio.
 
 

Lá estiveram Anatole France, Suzanne Despres, Paul Adam, Jeanne Catulle Mendes, Isadora Duncan. Eram convivas frequentes Humberto Gottuzzo, um dos homens mais elegantes da época, Ataulfo de Paiva, cavalheiresco e mesuroso, Joaquim Sousa Leao, Helio Lobo, espreitando a gloria acadêmica- figuras que surgiam para as letras e para a política e ali se encontravam com velhos titulares do Império .

 

descreve Brito Broca em A vida literária no Brasil - 1900(6)

Apesar de ter sido o mais cotado entre os intelectuais e a aristocracia , o salão de Laurinda Santos Lobo não foi o único nem o pioneiro do gênero. Já no Segundo Reinado, era conhecido e prestigiado o salão da Sra. Carmem Freire, a Baronesa de Mamanguape. Salões como o Cabana Azul, de Júlia Galeno ou o Salão Verde, de Júlia Lopes de Almeida, mais tarde herdado por sua filha a poetisa Margarida Lopes de Almeida, terminaram por transformar-se em verdadeiros centros do debate político e cultural .

Ainda em Brito Broca, encontra-se uma observação curiosa. Ironicamente, essa nova lógica da divulgação literária orquestrada pelas mulheres, estende-se também ao domínio das prostitutas do início do século.

Lê-se na página 23 de A vida literária no Brasil - 1900, o comentário sobre as tertúlias literárias nos originais salões dos bordéis do início do século:
 
 

Uma prostituição de alto bordo, marcando a paisagem social do Rio nessa época, estendia suas influências aos meios literários. A cocote, como a hetaira na Grécia e a gueixa no Japão, estava no centro da vida - escreve Gilberto Amado. Na pensão da Tina Tatti políticos de prestígio, altos industriais, discutiam problemas do dia. As regras do jogo social obedecidas, como em Atenas e em Quioto. A palavra lupanar só aparecia em horas de zanga em artigo ou discurso de Rui Barbosa. Condenar Susana Castera, a referida Tina Tatti, como mais tarde a Janine, a Eudoxia, dona de pensões de mulheres,seria prova de mau gosto.

Em São Paulo, na época do Modernismo, mulheres da elite tornam-se mesmo promotoras da produção literária de ponta e, de certa forma, exercem uma influência efetiva no mercado literário da época. A respeito do salão de Dona Olivia Guedes Penteado, um dos mais importantes de São Paulo ao lado do de Tarsila, Mário de Andrade recorda:
 
 

E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa mulher excepcional que foi Dona Olivia Guedes Penteado. A sua discrição, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela soube dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se chegava a ela, atraída pelo seu prestigio, artistas, políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparável(7). 

A percepção da importância destas formas de organização literária parece imprescindível para a definição da inserção das mulheres na cultura letrada e no espaço público nacional. Já no ano de 1890, em artigo no jornal paulista A Família, Inês Sabino havia observado "o quanto a literatura, o jornalismo e os salões literários estavam atrelados à emancipação da mulher". Ainda que existam importantes estudos sobre a imprensa feminina e sobre o alcance das atividades da leitora na formação do romance brasileiro, uma história da trajetória do pensamento feminino sobre a literatura e sobre as instituições literárias ainda está por se fazer.

Um campo ainda praticamente inexplorado neste sentido é, por exemplo, o do vasto circuito das academias femininas de letras. Algumas destas associações tinham, inclusive, um explícito sentido de protesto frente à lógica das instituições literárias masculinas.Não seria precipitado diagnosticar o protesto como projeto mais geral da criação dessas academias, criadas à margem da política de seleção praticada pela prestigiadíssima Academia Brasileira de Letras.

A primeira agremiação literária feminina de que se tem notícia foi a Liga Feminista Cearense,fundada em 1904 por Alba Valdez, identificada no meio literário como defensora do direito da ascensão cultural, econômica e política para as mulheres.

Outra pioneira foi a Academia Juvenal Galeno, da escritora Julia Galeno que tendo seu ingresso recusado na Academia Brasileira de Letras, cria sua própria academia "exclusivamente para mulheres", explicitando sua crítica frente à posição sexista da Academia Brasileira e promovendo sua inserção, ainda que marginal, no mundo institucionalizado das "belas-letras".

São inúmeros os casos de criação de academias femininas por ensaístas e escritoras feministas. É o caso de Adalzira Bittencourt que fundou no Rio de Janeiro a primeira Academia Feminina de Letras do estado e de Alzira Freitas Taques,fundadora da Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre. Atualmente essas academias representam 10% do total das academias espalhadas pelo país com registro nos arquivos da Academia Brasileira de Letras. São elas: a Academia Feminina Espirito-Santense de Letras, Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, Academia Feminina de Letras e Artes de Jundiaí, Academia Literária Feminina de Porto Alegre, Academia Feminina de Letras do Paraná, Academia Feminina Mineira de Letras, Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, em Curitiba,a Associação de Jornalistas e Escritoras do Brasil, em Montenegro, Rio Grande do Sul entre outras.

Circulando por estes espaços ou mesmo publicando livros em pequenas editoras locais, alguns nomes de mulheres sobressaem-se neste período ainda instável e não definido da reflexão critica feminina, como o de Ana Luiza Azevedo Castro, que escrevia para a revista da Sociedade de Ensaios Literários, por volta de 1866, Ursula Garcia, cujo nome aparece em jornais e revistas como o Potiguarania, onde em 1902 publicou um ensaio sobre Auta de Souza e Mariana Coelho que, em 1908, editou o Paraná Mental, historiografia da literatura paranaense.

Passados estes primeiros tempos, vão surgindo nomes que efetivamente passam a destacar-se na cena literária. É o caso de Lucia Miguel Pereira, chamada a "Madame de Stael do século XX", que, além de romancista, teve sua atividade de historiadora literária e biógrafa amplamente reconhecida. Exercendo com arguto profissionalismo "o oficio de compreender", como define a critica literária (deixando entrever sua relação com certos "dons femininos naturais"), seus estudos críticos e biográficos sobre os "patriarcas da literatura brasileira" Machado de Assis e Gonçalves Dias, mesmo num exame superficial, já denunciam certos recortes específicos. Em ambos os casos, a valorização de estigmas raciais, os efeitos de preconceitos e inseguranças na constituição do perfil de seus biografados é evidente. A vida de Gonçalves Dias (1943), por exemplo, envolveu um trabalho de recuperação e interpretação dos manuscritos do diário inédito de viagens escrito pelo poeta que merece ser avaliado melhor. Além de escrever em 1954, a novela histórica Cruzada das bravas mulheres de Gênova, Lúcia atuou de forma bastante incisiva na historiografia literária promovendo a revalorização da literatura infantil bem como a publicação do romance de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço, um dos clássicos perfis femininos de nossa literatura. Quanto à sua História da literatura brasileira - prosa de ficção - de 1870 a 1920, onde, no próprio prefácio, observa a pequena participacao das escritoras nas edições e antologias brasileiras, pode-se, novamente, perceber seu especial interesse em relação aos temas da marginalidade racial e sexual nos estudos sobre Luzia Homem, sobre o Bom Crioulo, sobre a obra de Francisca Clotilde ou Júlia Lopes de Almeida.

Ao lado de Lúcia Miguel Pereira, Gilda Mello e Souza constitue-se como referência obrigatória do ensaismo feminino. Em 1950, defende, na USP, sua tese de doutoramento A Moda no século XIX, sob a orientação de Roger Bastide, provocando controvérsias quanto à legitimidade tanto do tema escolhido quando da abordagem adotada. Trinta e sete anos mais tarde, a tese foi publicada com o titulo O espirito das roupas desta vez com enorme sucesso e reconhecimento da critica. "De repente a história girou e passou a valorizar a visão do detalhe, do cotidiano, das pequenas coisas. Com mais de 30 anos de idade, minha tese ficou moderna" diz a autora. Foi com esta visão do detalhe e com uma prática critica sutil e certeira que Gilda Mello e Souza nos ofereceu a surpreendente releitura de Macunaima, de Mário de Andrade,em O tupi e o alaúde e Exercicios de leitura que reune ensaios sobre cinema, literatura, pintura e arte contemporânea no Brasil.

É ainda, a partir da década de 1930, que começa a surgir uma produção critica feminina voltada para outras áreas como o teatro, a música e as artes plásticas. Luiza Barreto Leite, jornalista e atriz, por exemplo, assina notórios artigos sobre teatro no jornal A Noite e publica, em 1965, o livro A mulher no teatro brasileiro. Maria Jacinta, autora, atriz e diretora, exerce a critica teatral de forma bastante atuante de 1930 a 1967.

Na música destacam-se Oneida Alvarenga, aluna e colaboradora de Mário de Anderade, Dinorá de Carvalho, primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Música e Mercedes Reis Pequeno, responsável pela criação, em 1952, da Divisão de Música e Arquivo Sonoro da Biblioteca Nacional e autora, junto com Cleofe Person de Matos, da Bibliografia musical brasileira (1952).

Nas artes plásticas, entre as precursoras, estão Tarsila do Amaral que, além de liderar o movimento modernista na área das artes, escreveu sobre o assunto, regularmente, nas edições dominicais do Diário de São Paulo, Maria Eugênia Franco, autora, desde 1945, de artigos e ensaios publicados em jornais como o Estado de S. Paulo e Ultima Hora e Vera Pacheco Jordão, que, em 1959, inaugurou a coluna de artes plásticas no jornal O Globo.

A partir de 1960, vários nomes, ligados ou não à Universidade, surgiram e conseguiram impor-se num quadro profissional relativamente menos refratário á participação das mulheres na produção acadêmica e literária. Entre êles, para citar apenas alguns, estão Walnice Nogueira Galvão, autora de um estudo seminal sobre a representação da mulher na obra de Guimarães Rosa intitulado "Frequentação da Donzela-Guerreira", Dirce Riedel, Leyla Perrone Moysés, Marlyse Meyer, Vilma Arêas, Berta Waldman, Samira Mesquita, Marlene Corrêa, Tereza Vara e a nova geração como Marilene Felinto, Katia Muricy, Ligia Chiapini, vencedora do Prêmio Casa de las Américas de 1983, na categoria ensaio e Flora Sussekind, cuja obra, reconhecidamente importante, lhe rendeu o Prêmio Moinho Santista Juventude de 1990.

As demais áreas aqui registradas, ainda que não apresentem uma produção critica estruturada quantitativamente, já contam com uma importante colaboração feminina como é o caso de Aracy Amaral, referência obrigatória por seus estudos nas artes plásticas, Sheila Leirner premiada pela ABCA, como critica do ano, em 1975, Bárbara Heliodora, conhecida especialista do teatro shakersperiano, com presença regular na imprensa e na critica teatral, Maria Helena Kuhner que, além de critica desenvolve o projeto Ana Magnani com objetivo de abrir espaço às expressões e manifestações da mulher no teatro; Luiza Lagoas, com importantes contribuições no teatro e dança, Maribel Portinari cujo livro Nos passos da dança (1985) traz um abrangente painel do balé nos dias de hoje, Elin Maria Rocha e Nilcéia Baroncelli que procuram sistematizar a produção musical feminina em, respectivamente, Nós as mulheres (1986) e Mulheres compositoras (1987) - ambas fontes de consultas para este livro - , Maria Rita Galvão autora de Crônicas do cinema paulistano e Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz e Elice Munerato e Maria Helena Darcy de Oliveira, pioneiras no estudo da mulher no cinema brasileiro com o livro Musas da Matinê, Ana Pessoa e Ana Rita Mendonça que organizaram o primeiro levantamento sistemático da produção feminina publicado no volume Realizadoras de cinema no Brasil - 1930-1988 e Fernanda Bicalho e Patricia Morans com o levantamento das atrizes em Estrelas do Cinema Mudo Brasileiro - 1908-1930.

Estudos sobre a mulher no Brasil: uma perspectiva feminista?

A partir do final dos anos 70, o tema "mulher" pouco a pouco passa a ser considerado objeto legitimo de pesquisa acadêmica, assim como assunto de jornais e revistas especializados. Começava a delinear-se, entre nós, um novo campo de trabalho critico, na maioria dos casos, identificado com o desenvolvimento do pensamento teórico feminista que emerge, com força total, na Europa e nos Estados Unidos, a partir dos movimentos contestatórios da década de 1960.

Na critica literária, os estudos sobre a mulher hoje já constituem uma área de trabalho com perfil e definição própria. Ainda que sua organização institucional seja bastante recente - data de 1985, ano da criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher & das Delegacias de Mulheres, - os grupos surgem e se desenvolvem de forma surpreendente, despertando significativo interesse. A quantidade de trabalhos em torno das questões da mulher, seja na forma de teses ou de trabalhos apresentados em encontros e congressos, é uma amostragem expressiva da expansão desta área de estudos.

Durante a década de 1970, já era possível perceber uma certa movimentação neste sentido, através de iniciativas individuais e episódicas, ou até mesmo da formação de pequenos grupos informais de estudo. Entretanto, a constituição dos estudos sobre a mulher na literatura enquanto campo de investigação organizado e reconhecido institucionalmente, só pode ser identificada a partir da organização do "Seminário Regional sobre a Mulher na Literatura", que teve lugar na Universidade Federal de Santa Catarina, em julho de 1985. Desta experiência pioneira, surgiu a necessidade de eventos de maior porte, gerando os Encontros Nacionais "Presença da Mulher na Literatura" que, de 1987 a 1989, ocorreram em João Pessoa, Porto Alegre e Florianópolis respectivamente.

Em 1986, por sugestão de Suzana Funck (UFSC), foi criado o Grupo de Trabalho Mulher na Literatura da ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística), considerado o maior aglutinador de pesquisadores sobre a mulher na área. Em 1987, em sua primeira reunião, o GT já conta com cerca de 20 inscritos, número que cresce para 50 e 98 nos dois anos seguintes.

Para ter uma idéia da presença dos estudos sobre escritoras ou sobre o tema mulher nas teses de literatura, trabalhei, a título de exemplo, com a amostragem da produção de duas universidades do Rio de Janeiro, a Faculdade de Letras da UFRJ e a PUC RJ, de 1977 a 1989, época da emergência e consolidação desta área de estudos.

Neste período, foram produzidas no curso de mestrado em Letras da PUC, Rio de Janeiro, 269 teses, das quais 19 abordaram o tema Mulher na Literatura, ou seja, 7,06% sobre o numero total de teses. Já no curso de pós-graduação em Letras da UFRJ, das 437 teses de mestrados apresentadas entre os anos de 1973 a 1989, 41 referem-se à mulher, ou seja, 9,38% sobre o total dos trabalhos.

Nos encontros promovidos pelas duas associações científicas mais significativas da área de letras, a ANPOLL, criada em 1984, e pela ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada), criada em 1987, a incidência de apresentações e comunicações sobre a mulher também é expressiva, levando-se em consideração a pouca tradição dos estudos sobre a mulher. Nos cinco encontros da ANPOLL, 10.23% do total de trabalhos apresentados abordaram o tema mulher, incluindo-se aí aqueles apresentados no GT Mulher na Literatura. Analisando especificamente o último encontro, em julho de 1990, encontramos os seguintes números:

Total de títulos de exposição: 277
Total de títulos apresentados no GT Mulher na Literatura: 27
Total de títulos sobre a mulher nos outros GTs: 9
Soma de títulos sobre a mulher: 36
% de títulos sobre a mulher: 13%
% de títulos sobre a mulher excluindo-se os apresentados no GT
Mulher na Literatura: 3.25%
 

Neste ponto, gostaria de fazer uma observação que diz respeito à aparente facilidade de institucionalização dos estudos feministas em literatura no Brasil. O exemplo da aceitação imediata e do inesperado sucesso do GT Mulher na Literatura da ANPOLL, nossa maior associação de estudos literários, é eloqüente. Outros centros e núcleos aparentemente também não parecem ter encontrado maior resistência em inserir-se nos departamentos e programas acadêmicos de pesquisa. Que tipo de reconhecimento e/ou sucesso é esse? Qual seu raio de influência na discussão dos modelos teóricos e da epistemologia que rege os estudos literários no Brasil? Qual a voltagem de sua força crítica?

Ainda é cedo para responder estas perguntas. Entretanto, o que não pode ser minimizado é o fato de que o inesperado prestígio que o GT Mulher na Literatura ganhou na ANPOLL não se fez ainda acompanhar do reconhecimento, por parte da comunidade científica aí reunida, da legitimidade ou da capacidade dos estudos feministas para oferecer um novo corpus teórico e metodológico para a crítica literária.

Sobre as tendências da área, três linhas mestras de trabalho podem ser identificadas de forma imediata.

O primeiro grupo - e o mais numeroso - é aquele que se dedica ao trabalho sobre a presença da mulher na literatura. Assim, enfoca tanto as autoras mulheres como as personagens femininas em obras de escritores homens, sem, entretanto, evidenciar uma preocupação específica em relação à questão da mulher. Ainda que na realidade não tenham inserção imediata nas discussões centrais da área, esse grupo tem sido importante pela insistência em trazer a literatura realizada por mulheres para o campo acadêmico oficial. A promoção do reconhecimento institucional de uma "literatura feita por mulheres" é, sem dúvida, um passo importante, pois até muito recentemente essa literatura não era considerada objeto legítimo de pesquisa. Nesse sentido, é interessante observar a proliferação de teses acadêmicas sobre autoras femininas, que invariavelmente dispensam várias páginas com inúmeras e diversificadas estratégias para justificar como científico este tipo de estudo. Os argumentos desenvolvidos nestas teses são em si uma tomada de posição teórica, na medida em que não só a literatura escrita por mulheres foi sendo excluída da série literária com a maior eficácia como também os gêneros usados pelas escritoras - as formas orais, o diário,a correspondência,a biografia ou autobiografia, os testemunhos - também foram tradicionalmente considerados "gêneros menores". Por outro lado, os assuntos chaves que orientam o recorte mais freqüente dos estudos e da crítica literária tradicional, isto é, a formação nacional, os estilos de época ou os grandes autores,os movimentos de vanguarda ou as questões da "tradição e ruptura", não parecem compatíveis com as perspectivas que os estudos sobre as escritoras sugerem. Ao contrário, o estudo da "literatura feita por mulheres" traz, como conseqüência, inevitáveis questionamentos de base sobre a construção da historiografia literária, sobre a noção canônica de "gênero literário" e dos paradigmas estabelecidos para o mercado de valor literário.

No que diz respeito à literatura contemporânea, na maior parte dos casos, os estudos dedicam-se à análise de uma "linguagem feminina" em textos de escritos por mulheres. As autoras mais estudadas são Clarice Lispector, Virginia Woolf, Marguerite Duras, Lia Luft, Emily Dickinson, Ana Cristina Cesar, Adelia Prado, Cecília Meirelles e Lygia Fagundes Telles(8). No conjunto, a eleição de Clarice Lispector e Ana Cristina Cesar (jovem poeta da geração dos anos 70 cuja morte precoce mobiliza uma fascinação bastante particular) como símbolos de uma escrita feminina é clara. Isso parece ocorrer menos pelas possíveis semelhanças entre as autoras do que pela posição que ocupam na série literária. Clarice é reconhecida como a "maior escritora brasileira" e Ana Cristina, a representante, por excelência, da polêmica geração 70. A grande maioria dos estudos sobre Clarice e Ana Cristina não se filia a nenhuma perspectiva crítica feminista, o que é um dado surpreendente, tendo em vista as formas bastante específicas e mesmo radicais de inserção destas autoras no campo literário. Sobre Clarice, está sendo desenvolvido por Glória Cordovani um projeto bastante importante de organização de sua bibliografia ativa e passiva. Cordovani observa que, no conjunto das referências catalogadas, a maior quantidade de estudos sobre Clarice é de natureza filosófica, principalmente nos campos do existencialismo e da fenomenologia. Uma exceção dentro do conjunto de trabalhos sobre Clarice é o extenso trabalho desenvolvido por Nadia Gotlib sobre a autora, a partir de um viés mais identificado com as propostas teóricas feministas.

A maior parte das análises sobre a obra de Ana Cristina são interessantes no sentido de colocarem em pauta questões típicas e contraditórias dos jogos de linguagem sobre a "identidade feminina", tal como foram experimentados pela geração que assistiu à crise das ideologias feministas ortodoxas. Entretanto, os estudos sobre Ana Cristina, em sua maioria apaixonados e muito bem realizados, orientam-se claramente para a observação destes jogos de linguagem numa perspectiva puramente literária. O trabalho com as demais autoras referidas via de regra não se afastam substancialmente destes modelos. É curioso observar como, neste quadro de "eleições", são raros os estudos relativos à mulher negra, podendo-se citar apenas as pesquisas de Maria Lúcia Mott sobre escritoras negras ou os trabalhos de Laura Padilha e Heloisa Toller Gomes. Ou que escritoras como Rachel de Queiroz, pioneira e uma das maiores representantes do modernismo nordestino, ou Carolina de Jesus, importante testemunho das classes populares, para citar apenas dois exemplos, de certa forma, ainda não tenham merecido a devida atenção dos estudos sobre a mulher na literatura.

Outra vertente do exame da literatura contemporânea seria aquela que se ergue em torno do tema "erotismo", considerado com freqüência do domínio do feminino, e que reúne nomes como Olga Savary, Marly de Oliveira, Adélia Prado, Leila Miccolis e outras. O recorte destas análises move-se geralmente no quadro da lógica da procura de uma "linguagem ou identidade feminina", sendo ainda bastante rara uma discussão política do tema.

O segundo grupo, que representa uma tendência expressiva dentro da produção critica feminina, é aquele que se interessa pela discussão de uma escritura feminina independente dos "fatores biológicos que definem os sexos" seguindo a linha dos trabalhos de Kristeva, Barthes, Cixous, Irigaray, Derrida e Lacan. Não se pode dizer que essa tendência seja homogênea. O que a caracteriza, de forma geral, é a busca da atopia de uma escrita feminina como definem Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão(9) , ou do lugar da dor, como quer Vera Queiroz, nos textos femininos e masculinos. De modo geral, essa tendência, com freqüência nomeada como "psicanalítica", associa a semiologia, a teoria literária pós-estruturalista e a psicanálise. São trabalhos com a linguagem bastante interessantes e importantes e, entre nós, raramente apresentam uma dicção política. O trabalho de Rosiska Darcy de Oliveira é um dos casos em que esta linha de reflexão procura uma articulação explícita com o político. Em outros casos, percebe-se a presença desta preocupação no trabalho mais direto de análise de texto, como pode ser visto no ensaio "As incuráveis feridas da natureza feminina" de Lucia Castello Branco(10) e a tese Mulher em cena:Cenas de amor e morte na ficção brasileira de Lucia Helena Vianna.

Muitas das integrantes desse grupo tiveram ou tem uma participação militante no movimento ou na imprensa feminista, mas definem esta atividade como claramente desvinculada de sua produção teórica. O campo de análise destes estudos é, prioritariamente, a literatura francesa, com algumas incursões na literatura brasileira em torno de Clarice, Lia Luft, Adélia Prado, ou ainda da questão da descontinuidade na escritura feminina de autores masculinos.

Há ainda um terceiro grupo, que, embora não muito numeroso, é considerado como o mais participante. Este grupo, filiado aos modelos saxônicos, traz uma inflexão mais claramente política e privilegia, ao contrário dos anteriores, a mulher como questão dentro do quadro da produção intelectual e artística. Seus trabalhos são marcados por uma perspectiva feminista e absorvem desde os estudos arqueológicos de recuperação da história silenciada da produção feminina até a análise dos paradigmas patriarcais e logocêntricos da literatura canônica. A maior parte dos encontros e núcleos institucionais existentes surgem em torno dessa tendência. Pode-se dizer que concentra a maior quantidade de projetos conjuntos, especialmente em torno da historiografia literária e da pesquisa em torno de autores, temas e gêneros relativos à literatura e à imprensa produzida no século XIX. Entre eles, destacam-se os trabalhos de Marlyse Meyer sobre os romances escritos por mulheres no século XVIII, o de Luzilá Gonçalves Ferreira sobre a poesia feminina em Pernambuco no segundo oitocentismo, a pesquisa de Nadia Gotlib sobre os cadernos do diário da Condessa de Barral - preceptora das princesas Izabel e Leopoldina e amante de D. Pedro II -, o trabalho de Valéria de Marco sobre as mulheres nas narrativas fundadoras de Alencar e as teses Encantações. Escritoras e imaginação literária no Brasil, século XIX, de Norma Telles, Mulheres de ontem? Rio de Janeiro - século XIX, de Maria Thereza Crescenti Bernardes e Mestra entre agulhas e amores - a leitora na ficção de Machado, de Maria Helena Werneck.

A ênfase na historiografia feminista vem abrindo um campo de debate importante, relativo a problemas de fundo da literatura como os pressupostos da genealogia literária, as noções de "continuidade" e "especificidade" das formas literárias e a legitimidade do binômio oralidade/escrita. Sem dúvida, temas de alta voltagem política.

Alguns estudos importantes deste grupo começam a trabalhar a articulação dos estudos literários com a crítica epistemológica da produção acadêmica no Brasil. Os mais recentes são os trabalhos "A referência revisitada: gênero e critica literária" de Ana Maria Vicentini e "Da Ginolatria à Genologia: sobre a Função Teórica e a Prática Feminista" de Rita Schmidt(11).

É inegável que o pensamento critico feminista no Brasil, em fase de expansão e formação de um corpus teórico próprio, pelo menos na área das letras, já mostra quantitativa e qualitativamente sinais de seu potencial critico e político. É inegável também, como comprova este volume, que a atual voga dos estudos feministas não é apenas mais uma moda acadêmica, mas é um entre os muitos resultados da longa trajetória das mulheres, com idas e vindas, estratégias e lutas, em busca não só de seus
 
 

direitos civis, mas também de seu inalienável direito de interpretação.
 
 

Heloisa Buarque de Hollanda
 

novembro 1992









Explicações e tecnicalidades

Ensaístas certamente não é a palavra correta. A escolha do termo foi arbitrária. O principal motivo de tomarmos este partido, entretanto, foi a constatação de que o pensamento crítico feminino nas artes e na literatura, abundante como este trabalho comprova, realizou-se em formas e espaços muitas vezes marginais e diversificados. Para uma melhor compreensão da especificidade da trajetória da crítica realizada por mulheres, optamos por dilatar as noções tradicionais de ensaísmo e de crítica literária, absorvendo as possíveis fronteiras destas práticas onde o pensamento feminino sobre a literatura e as artes tenham se desenvolvido e circulado. O campo definido para pesquisa foi o das letras e das artes, englobando a reflexão sobre a literatura, a música, o teatro, a dança, o cinema e as artes plásticas.

Desta forma, pode-se perceber, na própria estrutura dos verbetes, os vários momentos da história da crítica feminina. No século XIX, os dados de identificação são recorrentemente vinculados à origem familiar e à atuação em revistas e publicações informais, determinando uma formatação mais narrativa e circunstancial. A partir de 1934, com a fundação das Faculdades de Filosofia no Brasil, e, principalmente, no período posterior á regulamentação dos cursos de pós-graduação que permitiram a consolidação da pesquisa acadêmica, os verbetes tornam-se mais "técnicos" refletindo a profissionalização da crítica feminina.

Apenas autoras com trabalhos publicados, quer sejam em livros ou periódicos, foram incluídas neste levantamento.

Tomando em consideração a freqüente flutuação de nomes de família em casos de casamentos e divórcios sucessivos, a entrada dos verbetes foi feita pelo nome de batismo das autoras, seu único "capital inalienável". Quando o nome artístico exclui partes do nome de batismo, estas foram colocadas entre parênteses. Exemplo: Adalzira (Cavalcanti de Albuquerque) Bittencourt (Ferreira).

Os verbetes incluem local e data de nascimento e (quando for o caso) morte, formação e
atuação profissional e publicações, bem como as fontes consultadas. Com relativa freqüência, encontramos certa dificuldade em localizar, ou mesmo obter através de questionários, informações sobre a data de nascimento das autoras. Frente à evidência das pressões culturais que regem o território negro da "idade das mulheres", respeitamos, politicamente, a sonegação deste dado, não apenas sintomático mas, sobretudo, registro expressivo das tensões que envolvem a inserção das mulheres no espaço público.

Na medida em que, na maior parte das vezes, a historiografia tradicional "esqueceu-se" de absorver a produção intelectual feminina, apesar do trabalho de "busca" realizado, há algumas ensaístas sobre as quais só foram obtidos dados aparentemente insuficientes. Entretanto, não as excluímos deste volume, confiantes na continuidade e aprofundamento deste trabalho por futuros pesquisadores.

Além desta publicação, as informações obtidas estão sendo registradas em um Banco de Dados, atualmente em fase de implantação, informatizado e passível de atualização permanente. Este acervo, em breve poderá ser consultado pelos interessados no Núcleo de Documentação do Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC) da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Durante todo o período de elaboração do Ensaístas brasileiras, contamos com a imprescindível colaboração dos consultores Nadia Gotlib e Maria Helena Werneck (literatura), Maria Helena Kuhner (teatro), Hernani Heffer e Lécio Augusto Ramos (cinema), Marcio Doctors (artes plásticas), Vasco Mariz (música) e Enamar Bento (dança).

Agradecemos ao IBAC, CNPq, FAPERJ e FINEP pelo apoio e pelo interesse com que acompanharam a realização deste projeto e à direção da OLAC, pela atenção e generosidade com que abriu seu acervo para nós.

Especial agradecimento merecem também Afrânio Coutinho, Ana Arruda, Antônio Houaiss, Edwaldo Cafezeiro, Gilberto Mendonça Telles, João Carlos Cavalcanti, Luiz Paulo Horta, Mario Camarinha, Nelly Novaes Coelho, Plinio Doyle e Silviano Santiago que nos forneceram sempre valiosas informações.
 
 

as autoras
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Notas:

(1) Maria Rita Soares de Andrade. A Mulher na literatura. Aracaju, Oficinas gráficas da "Casa Avila", 1929.

(2)Lucia Miguel Pereira. "Novos temas de João Gaspar Simões". In: Revista do Brasil RJ,n. 14, ago 1939, p.86.

(3) São inúmeros e decisivos os estudos e intervenções de Marlyse sobre a formação do romance. Sugiro, como exemplo, os textos reunidos na publicação De folhetins, Série Apostila n.2, Ciec/UFRJ, 1990 e "Romances escritos por mulheres no século XVIII" em A mulher na literatura. vol. 1, org. Ana Lúcia Gazolla, UFMG, 1990.

(4) Elza Miné "A imagem da 'leitora' no Novo Mundo" in Ana Lucia Gazolla, A mulher na literatura. vol 1, UFMG, 1990. e Maria Helena Werneck Mestra entre agulhas e amores: a leitora na ficção de Machado e Alencar.Dissertação de Mestrado, PUC RJ,1985

(5) Trecho extraido do Jornal "A Família" de 8 de dezembro de 1888, SP.

(6) Brito Broca. A vida literária no Brasil - 1900 , capitulo III, paginas, 23, 24 e 25.

(7) Andrade, Mario. in "O movimento modernista", em Aspectos da literatura brasileira,  páginas 240 e 241.  Ed. Livraria Martins Editora, SP.

(8) Estes dados referem-se ao exame de teses, artigos e apresentações em encontros e seminários.

(9) Ruth Silviano Brandão e Lucia Castello Branco. "Con-sederações em torno de um buraco" in Feminino e Literatura. Tempo Brasileiro. n. 101, abr./jun. 1990 p.142

(10) Este ensaio é parte do livro A Mulher Escrita de Lucia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão. Casa-Maria Editorial, 1989.

(11) Estes trabalhos foram apresentados na reunião da ANPOLL de julho de 1990.

 


Fonte: http://www.pacc.ufrj.br/heloisa/INTRODIC1.html