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"Nosso Grupo de Genealogia da Familia Freire será tão forte quanto seus membros o façam"

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A Poesia de Ezequiel Freire (*)

 

 CONFERÊNCIA DO SR. FRANCISCO PATI

(*) Palestra comemorativa do primeiro centenário de nascimento de Ezequiel Freire, em sessão solene da Faculdade de Direito e da Academia Paulista de Letras, no dia 15 e Junho de 1950, realizada na "Sala João Mendes".

Rezende, "poética cidade suspensa como um ninho aos flancos graníticos da montanha", segundo o belo traço descritivo de Narcisa Amália, acha-se em verdade, intimamente ligada à historia da poesia brasileira.

Além de Ezequiel Freire e Narcisa Amália, lá nasceram ou viveram Luís Pistarini, Aristêo Seixas, Luis Murat, Raimundo Corrêa. Isso justifica mais um conceito da ilustre poetisa, quando diz que no interior da província fluminense se encontra "uma pequena cidade em cujo regaço a Musa parece repousar com as mesmas delícias com que repousa a ave na concha tépida do ninho materno". São, por outro lado, muito estreitas as suas relações com São Paulo. Deu-nos Rezende, com efeito, o patrono da cadeira 20, da Academia Paulista de Letras, e o titular da de número 24. O fato de ter sido Ezequiel Freire escolhido pelo professor Reinaldo Porchat para patrono da cadeira hoje ocupada pelo professor Soares de Melo é uma prova do conceito em que os intelectuais paulistas sempre tiveram o autor das "Flores do Campo". E o fato de ser Aristêo Seixas titular de outra poltrona prova também a gratidão que devemos à ilustre cidade.

Narcisa Amália não esconde o seu amor à "formosa noiva dos estivos lumes". Chama-lhe "estrela da alvorada, perdida nas celagens do horizonte", "Filha de Tupã", "garça gentil": 

"Ó filha de Tupã, que um véu de brumas
Estendes sôbre o mísero precito;
Ó Ave linda, que as mimosas plumas
Aqueces nos ardores do infinito;
Garça gentil, que surges das espumas
Como da mente da poeta o mito,
Enquanto a lua ondula pelo espaço
Abre o meu sono eterno o teu regaço!"

Na poesia de Ezequiel Freire sentimos a presença da cidade natal, de algumas anotações topográficas. A "montanha granítica" de que nos fala a poetisa das "Nebulosas", em cujos flancos se dependura a cidade como um ninho, é o Itatiaia, - "êsse livro opulento de páginas eternas", ainda no dizer de Narcisa Amália. De maneira que quando isso acontece na vida de uma cidade, muito profundas são as suas repercussões na vida do homem. Nosso espírito é mais sensível às altitudes do que às profundidades. Olhando para baixo, temos mêdo. Olhando para o alto, temos ambições e esperanças. Dizendo que o ideal "é um gesto para cima", fêz o filósofo argentino o elogio das montanhas, porque o sonho é, realmente, uma sugestão dos píncaros. Eles nos obrigam a olhar para o alto, à procura, talvez de melhores mundos.

O cenário admirável dentro do qual decorreu a sua infância havia de ficar indelevelmente marcado na alma de Ezequiel Freire. Foi por isso que êle se fêz panteísta. O panteísmo foi-lhe pretexto para perpetuar na sua poesia a paisagem natal. A felicidade de ter nascido ao pé da mais alta montanha do Brasil desenvolveu nêle o culto da natureza. Sob o ponto de vista da poesia a natureza é maior estímulo que a alma humana. Nós somos tristemente monótonos, mesmo nas horas de felicidade. A natureza renova-se, ao contrário, a cada instante, ora sob os efeitos da luz, ora sob o pêso das trevas. O nevoeiro que envolve os grandes cumes, ora se adensa, ora se esgarça, umas vêzes sobe, outras desce, não é nunca o mesmo. Sob a incidência da luz solar, as árvores mudam constantemente de vestido, numa perene festa de noivado. À noite, sob o luar, a sombra tem matizes que a palheta do pintor jamais reproduziria:

"Há tamanho doer no tom dos ventos, 
tão explêndida luz nestas clareiras,...
que minhas cismas vão voando à tôa
como um bando de pombas forasteiras".

Ezequiel Freire nasceu no ano em que na Inglaterra falecia Wordsworth, principal figura do grupo conhecido na história da literatura inglêsa como o dos "poetas lakistas". Wordsworth refugiava-se à margem dos lagos de Cumberland e do Westmoreland, para estar em contato mais íntimo com a natureza. Na sua opinião, a natureza vale por si mesma, e pelos estados de alma que sugere. É um conceito com o de Ezequiel Freire, quando, a propósito de José Bonifácio, escreve o seguinte: "que mais é a inspiração do que essa misteriosa afinidade por meio da qual se opera a integração da alma do Poeta na da Natureza, a alma mater que se revela rumores da floresta, no murmúrio lingínquo da cachoeira, na trepidação da vida subterrânea, no trêmulo da vida sideral".

Ezequiel Freire nasceu em 1850 e morreu em 1891. As "Flores do campo" são de 1874. O ano de 1874 guarda inda as ressonâncias das "Espumas flutuantes", de Castro Alves, publicadas em 1871. É aqui em São Paulo o ano das "Rosas Loucas", de Carlos Ferreira. É o ano de apogeu de Alencar, cuja obra "prodigiosa de reptos de eloqüência e de fulgurações de estilo", segundo Silvio Romero, foi produzida de 1852 a 1877.

O mesmo Silvio Romero fixa o ano de 1870 como o da "morte inevitável do romantismo". No prólogo aos "cantos do Fim do Século", que são de 1870, o crítico sergipano afirmava não ter a poesia privilégios de inviolabilidade: "A poesia é um resultado da organização humana; nada tem de absoluto nem de sobrenatural; nada, por outro lado, de desprezível ou repugnante".

Nas "Flores do Campo" a indecisão dos temas está a indicar a indecisão das influências. É verdade, não obstante, que predominam os acentos panteísticos. Mas é mais tarde, como prosador, que êle desenvolverá o seu tema predileto. Publicadas aos 24 anos de idade, aquelas "Flores",

"....filhas das alvoradas,
- flores do meu coração;
umas - quase des'brochadas ,
outras - ainda em botão",

supõe-se que foram escritas a partir da adolescência, sob o influxo das primeiras leituras e dos primeiros amores. Ressentem-se, por isso, daquele subjetivismo excessivo que caracterizou a poesia dos grandes românticos. A única diferença, em favor de Ezequiel, é que êle mistura a natureza às suas decepções e aos seus sonhos. Encontra sempre um meio de encaixar a paisagem na sua dor, como na poesia "Nevoeiro"

Dos morros grandes a ouriçada crista
viste um chinó alvíssimo de brumas;
dir-se-ia um rio congelado o vale
no alvor de neve do sendal de espumas.
D'entre as folhagem das molhadas árvores 
sobem novelos de súbtil fumaça
e vão seguindo as travessuras doudas
da vibração que nos sarçais perpassa".

Alguém já dever ter afirmado que nos poetas românticos a natureza é escolhida como cúmplice dos seus amores. O poeta vê, por exemplo, no meio do bosque, um recanto amável. Árvores de ramos fartos formam um ninho acolhedor e macio. A relva é um tapête. Há flores perfumando o ambiente. O poeta vê tudo isso e imagina que seria bom estar ali ao lado da mulher amada. Não é a beleza da paisagem e sim a sua cumplicidade que o seduz:

Os efluvios do geranio
acendem langues desejos;
na matas virgens às dryades
os sylphos roubam mil beijos;
o sangue - corre precípite,
a alma - em sonhos se abisma,
e a mente - embala-se languida
na rêde frouxa da cisma...

Os jasmins atiram pétalas
ao chão relvoso e macio;
triste rumoreja o córrego
e a brisa morna do estio
traz o perfume dos álamos
onde enrosca a liana;
Mas tu vagueias, Narcilia,
longe da erma cabana."


Só mais tarde, repito, Ezequiel Freire considerará a natureza "uma Castalia" que "murmureja em cada córrego das nossas várzeas ridentes". Registrando em 1886 o aparecimento dos "Sonetos e Rimas", de Luís Guimarães Junior, falará em "reversão de espírito nacional para as fontes populares da poesia para o estudo da natureza pátria" e sentenciará que "só a natureza nos pode fornecer as tintas para darmos ao nossos escritos os melhores efeitos do pitoresco literário". Por enquanto, não. Por enquanto a natureza é apenas moldura, poderia dizer que ela é ainda a grande alcoviteira do poeta.

Ezequiel construiu o seu rancho à beira da estrada, entre moitas de pita e bananeiras, com bambús e goiabeiras ensombrando o páteo, ao lado da porta grande. O rancho é pobre , de sapé, mas os galhos do cafeeiro, insinuando-se pela janela aberta, surpreendem-nos na casa. O tico-tico pula no farelo, como haveria de pular mais tarde na música de Zéquinha de Abreu. Na gruxiama salta o gurundi. Muge o gado ao longe, no curral. Moleques brincam no outro lado da estrada. Vem da distância a voz do tropeiro no carreador, voz maguada, que ora se eleva ao céu como uma cantiga, ora fica na terra como uma queixa. O vento não sópra: dói nas carnes do poeta em retiro. E ele acha, então, que isso não está certo:

"Ó gentes que morais aí na côrte,
sabei que vivo aqui como um lagarto.
Ó ventos que passais, contai à moça
que há duas camas no meu pobre quarto..."

Em 1887 Luís Murat manda-lhe um exemplar do poema dramático intitulado "A última noite de Tiradentes". Ezequiel Freire aproveita a oportunidade para mais uma vez voltar ao assunto da natureza repudiada pelos nossos poetas, falando, em linguagem um tanto difícil, em "fenomenalidade emocional do poeta": "Em verdade, - pergunta, - onde outro céu, outras florestas, outras campinas, rios caudalosos e trépidos regatos, flores tão belas, féras mais bravas; tôda a dramática existência do aborígene vivida no recesso dos sertões misteriosos; e esta exuberância universal de fôrça; esta maravilhosa Natureza, que é só contemplarmo-la para em nós vibrarem tôdas as cordas da gama sensitiva, desde a ternura melancólica até às poderosas comoções do sublime?"

Isso foi em 1887. Estamos, porém, ainda em 1870 e poucos:

"Nos altaneiros píncaros,
nas regiões algentes
das serras imponentes
volteiam frias brumas
e além, além se esfrolam
nas praias oceânicas
os flocos alvadios
de trépidas espumas
rasgando o seio níveo
de encontro à pendia;
- Porém, Lelia é mais fria
que a neve das alturas!"

Raimundo Corrêa publica em 1887 "Versos e Versões".

Ezequiel Freire presta homenagem ao grande artista do verso. Lamenta, porém, não tenha o autor do "Mal secreto" reservado no seu livro espaço maior à natureza. Cita a magnífica tradução de "A pantera negra", original de Lecomte, e escreve: "Uma restinga de mato, à beira da lagôa, e, circunfazendo, a perder de vista, campinas verdejantes de macega tenra. Ao longe passam gauchos, à desfilada. Vem vindo o gado sedento ao bebedouro. Do arvoredo umbroso, cauto espreitando, um tigre faminto surge. Subitamente, de um salto, ei-lo que prêa uma média novilha mosqueada; foge disperso o gado temeroso, e, a fera rugindo crava as garras na tremente petrina da rez presa. Pelos ares, grasnando, vão-se as aves palustres fugitivas; e ao silvestre esconderijo, lentamente, o tigre saciado volta. Entretanto, pouco a pouco, o sertão imenso se despovôa e silencia..."

Já nas "Flores do Campo" se revela o poder descritivo de Ezequiel Freire e é pena que o poeta, sabendo dar conselhos a Raimundo, não tivesse querido, depois dos versos da adolescência, servir de exemplo a si mesmo, como na representação do saci. Nesse poema encontramos todas as suas qualidades de evocador e pintor. O verso é rítmico e fortemente descritivo:

Das noites sem luar nas horas mortas,
e é tudo escuridão pelas senzalas,
quando a lareira não tem mais gravetos
e só se ouve o resonar dos pretos;

surge d'além das bandas da tapera,
cavalgando um corcel de taqurí,
o pavoroso espectro das madórnas,
o herói das sextas-feiras - o sací.

Traja quimão de baetilha escura
carapuça em funil - hirta e vermelha;
guarda na dextra as rédeas de tabúa
e aponta do cigarro atraz da orelha.

Entra de manso pelo vão das portas
e se aninha no bojo de um pilão;
espia o rosto dos cansados negros;
se ninguem vela, salta logo ao chão,

vai ao cinzeiro do borralho extinto;
sôa um leve rumor dai a pouco;
- é a cinza a cair como garôa
nos olhos do moleque dorminhoco...

No outro dia bem cedo o toque d'alva
chama a gente do eito p'r'o terreiro;
mas ninguem surge dos quietos fechos,
nenhum moleque quer sair primeiro

e do feitor ao retumbante berro
faz coro a exclamação de medo: ih, ih!
Opina um grupo: foi zumbí que veio;
responde um outro grupo: foi sací.

Observa Wenceslau de Queiroz que, embora não tendo pertencido, na Faculdade de São Paulo, ao grupo dos parnasianos, de todos foi amigo intimo o autor das "Flores do Campo". Ezequiel não tomou parte, é verdade, no movimento de renovação literária, cujo principal objetivo era o culto da língua e o domínio das paixões. Seu livro de estréia, único que nos deixou, é contmporâneo das "Espumas Flutuantes". Ao tempo em que foi escrito, achava-se o A. sob a influência dos autores enumerados na poesia "Criado e Bibliotéca", incluida na ultima parte do volume;

Na minha estante se enfileiram livros;
leio-os à noite e leio-os de manhã:
- o Azevedo, o Abreu, o Castro Alves,
o Machado de Assis e o Pelletan.

A George Sand, Varela, Nebulosas
(com retrato da autora) e o Alencar;
o meu xará, o Serra, e muitos outros,
que fora fástidioso enumerar

Não tendo, entretanto, pertencido ao grupo dos parnasianos, em grande parte se afasta do grupo dos românticos. A linguagem é invariàvelmente bem cuidada, o verso bem feito, as imagens são sempre felizes. Nota-se nele, principalmente, um começo de reação contra o subjetivismo excessivo dos românticos, sem, todavia, nenhum sintoma da simulada impassibilidade dos parnasianos. Nota-se nele, principalmente, o amor á natureza e aos temas nacionais, muito embora não tivesse conseguido, talvez pelo verdor dos anos, fazer-se pioneiro de uma bifurcação do movimento renovador. Poderia, em verdade, ter sido, dentro da cruzada parnasiana, uma cunha em favor do culto à terra brasileira. Com a arte do verso, que possuiu desde muito jovem, e com as suas idéias sobre o amor á natureza, que expendeu depois dos trinta anos, em assídua colaboração na imprensa de São Paulo, fácil lhe fora servir de epigono a uma corrente nacionalizadora dos motivos poéticos.

Sente-se, em verdade, na poesia de Ezequiel Freire na indecisão e na variedade dos seus temas, no comentário ora nostalgico, ora jocoso, ás próprias emoções, uma insatisfação denunciadora da procura de novos rumos. Obra de estréia, reunindo composições da adolescência e da primeira mocidade, "Flores do Campo" não pode, evidentemente, aspirar ás honras de livro definitivo. É, na minha opinião, ao contrário, livro provisório, esboço tacteante e rudimentar de uma obra que a vida não permitiu ao poeta executar na idade madural, falecendo aos quarenta e um anos de idade, seu autor deixou-nos, com ele, uma imagem incompleta do seu talento. Deixou-nos, efetivamente, apenas um tema para estudos. Relendo-o home verificamos que os seus versos, resistindo embora ao confronto com os de muitos de seus contemporâneos, contêm apenas o itinerário de uma grande alma de poeta.

Ezequiel Freire foi contemporâneo de Castro Alves. Muito embora nos diga em "Criado e Biblioteca", que Castro Alves figurava entre os seus autores de todas as horas, tenho a impressão de que não lhe mediu as azas de gênio. Assim, na poesia "O Parnaso, parodia da poesia "O Itatiaia", de Narcisa Amalia, lê-se:

"Bem alto ostenta-se o Alvares,
sobre um poetastro,
de perto o emparelha o Castro
- vulto de alguma estatura; -

pretenso colosso-ródio,
rastejam-lhe aos calcanhares
reputações singulares
da nossa literatura..."

Sem embargo, porém, do conceito em que o tinha o autor das "Flores do Campo" direi que ter sido contemporâneo de Castro Alves, e ter sobrevivido, é fato que precisa ser alegado em favor de Ezequiel. Castro Alves não foi apenas o maior poeta épico do Brasil: Foi, no seu tempo, o maior da América. Tão grande o seu brilho que ofuscou o de seus contemporâneos e continuou a ser projetar em nossa literatura, através de idades, escolas e temperamentos.

Ezequiel Freire, conseguiu, no entanto, manter o seu lugar ao sol. É um grande título.

Patrono de uma cadeira da Academia Paulista de Letras, não o consideramos, por ter nascido em Rezende, uma glória de empréstimo. Consideramo-lo, muito pelo contrário, uma glória paulista,  porque nascido em Rezende, no Estado de Rio, morreu em Caçapava, no Estado de São Paulo. Do túmulo onde repousam as suas cinzas, continúa a velar por nós, através de uma gota de água que, como uma lágrima, se perpertua sobre a sua lápide funerária, e que, a um poeta desconhecido mas sincero, inspirou a homenagem destes quatorze versos:

“Dizem que sobre o túmulo do Poeta,
na cidade que tanto lhe queria,
qual se fosse uma lágrima discreta,
brilha uma gota de água, noite e dia.

A humanidade sofredora e inquieta
v
em de longe enxugá-la, em romaria,
m
as sob a luz que do alto se projeta
e
la renasce cristalina e fria.

É a alma do Poeta, benfazeja e pura,
q
ue, descendo dos paramos dispersos,
a
brilhar sobre a própria sepultura,

  dá prestígio de lenda ao Campo-Santo...
-  Já que não pode desfazer-se em versos,
a alma do Poeta se desfaz em pranto."
(Francisco Pati)

   

Fonte: Revista da Academia de Letras, pag. 132 à  143.